Não vale deixar para depois, Vale

CRA-RJ
7 min readOct 21, 2019

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*Adm. Wagner Siqueira

A ampla campanha publicitária da Vale do Rio Doce, afirmando as providências tardias que realiza em consequências das tragédias de Mariana e Brumadinho, leva-nos a insistir no tema já publicamente esquecido, a não ser pelas famílias das vítimas dessas tragédias que o arrastarão pelo resto de suas vidas. A edição da Resolução nº13, de 13/08/2019, da Agência Nacional de Mineração, que estabelece medidas regulatórias sobre barragens de mineração, em especial as construídas ou alteadas pelo extravagante método a montante é uma boa definição. Porém, post-mortem coloca a tranca depois da porta arrombada.

Mantendo o ditado de ‘antes tarde do que nunca’, é importante destacar que a área de RH da Vale não minera mineiros, minera gente. Um bom RH devia recrutar e selecionar profissionais que conheçam efetivamente o negócio de extração de minérios. Mas, a Vale há muito abandonou esse critério de excelência de ser uma verdadeira escola de formação prática de engenheiros de mineração, de quadros efetivamente comprometidos com o efetivo fim da empresa: extração, mineração e beneficiamento do minério.

Diego Baravelli

Infelizmente, o critério da Vale é diferente: faz muita governança e pouca engenharia. Cuida muito das atividades meios e dá pouca atenção às atividades fins da empresa, que é de onde realmente extrai os seus lucros. Que obviedade! É claro que a Vale extrai os seus lucros dos resultados das atividades fins. Espera lá! Isso não é tão óbvio: é exatamente em cima das atividades fins que a Vale faz as suas maiores reduções de despesas e os seus maiores contingenciamentos. É a gestão da planilha, no jargão dos ‘tecnizinhos’ insensíveis.

O que interessa são os resultados financeiros, mesmo à custa da violação do DNA da empresa, da perversão de sua genética, estritamente de uma empresa de engenharia de minérios. É preciso dizer que a Vale optou pela redução de custos em cima das atividades fins com o propósito de aumentar os seus lucros. Repito: a lógica financeira para agradar aos acionistas termina em erros monumentais de gestão e de governança. A empresa passa a contratar pessoas de muito bom nível para as atividades meio, de finanças, de marketing, de governança corporativa, de construção de imagem etc., mas aperta na contratação de quadros qualificados para as atividades fins.

A opção por soluções mais baratas, pretensamente mais lucrativas, serve apenas para apresentar aos seus acionistas resultados financeiros cada vez melhores. Pouco importa que esteja violando a sua natureza como empresa: o que vale para a Vale são os resultados financeiros de curto prazo e um bom balanço em azul a apresentar. Exacerba no tangível, contabilizável, mesmo que à custa do sacrifício do intangível, mas não contabilizável, por não aparecer nos balanços. No entanto, são os recursos não contabilizáveis que garantem o desempenho autossustentável, vital para a empresa.

O pensamento é ‘dispensa a engenheirada de cabelos brancos, rara e cara, porém longamente treinada, e a substitui por engenheiros recém-formados, com bons currículos universitários, mas com muita pouca vivência na gestão direta de minas e suas complexidades’. Os experientes saem e não se formam novos quadros técnicos para a gestão das empresas. Apenas custam menos. A empresa perde o know how e a expertise dos que ensinavam ‘a engenheirada jovem’; contrata terceirizados a custos cada vez mais baixos, dispensa os experientes engenheiros, tratados como velharia, e deixa de formar novos quadros técnicos on the job, em serviço, por ser esta uma área de conhecimento que não basta o canudo de papel: tem que ralar e aprender no trabalho com quem sabe. Aprender e se desenvolver fazendo. Perdem-se gerações de engenheiros e Administradores ensinando a seguinte a realidade complexa da extração de minério.

Outros casos

É o mesmo equívoco gerencial da Light aqui no Rio de Janeiro: na Vale, as tragédias ambientais repetidas; e na Light todo dia estoura um bueiro na cidade, destruindo carros e patrimônios materiais e matando pessoas em decorrência de falta de manutenção e de controle. O mesmo com a Cedae, empresa de águas e saneamento aqui do Rio, que comete também este equívoco gerencial: todo dia estoura uma canalização d’água e de saneamento com repercussões desastrosas para a vida da cidade e sempre com vítimas humanas.

O oportunismo financista dos dirigentes dessas empresas, sempre de olho nos resultados imediatos, leva às tragédias em decorrência de uma visão pervertida de gestão empresarial. E o mais incrível é que essa gente apavonada vive ganhando prêmios de gestão e o reconhecimento estranho de estranhas organizações sociais, de ONGs e governos. Mesmo com terceirizados mal preparados e engenheiros mais baratinhos que redundam na repetição dos desastres. Assim, o barato sai muito caro: manutenção precária e decisões erradas redundam em crimes ambientais e crimes contra pessoas.

Com isso tudo, chegamos ao tal alteamento que a resolução da Agência Nacional de Mineração deseja agora regulamentar: fazem barragens de resíduos a montante inicialmente previstas, por exemplo para 5 ou para até 10 milhões de metros cúbicos; mas para baratear o custo do armazenamento do resíduo, logo aumentam de 5 ou 10 para 17 e 20 milhões de metros cúbicos. E aí, as barragens colapsam por excesso de carga. Matam pessoas, destroem o meio ambiente. Eles economizam a curto prazo, mas praticam inexoravelmente crimes ambientais e contra pessoas logo adiante, com as tragédias que sempre e repetidamente ocorrem por descumprimento de limites de segurança. Claro, também, por absoluta falta de fiscalização prática das agências de controle, por exemplo, da ANM.

Absolvição pela mídia

É evidente que o monitoramento da mina com alta tecnologia é muito importante, principalmente depois da porta arrombada, por isso a Vale agora anuncia com grande destaque e estardalhaço, com uma dinheirama sendo aplicada para divulgar maciçamente pela imprensa as soluções post-mortem que estão sendo empreendidas pela empresa.

Claro que os departamentos comerciais de todas as mídias adoram e, logo, todos atenuam as cobranças das providências efetivas que a empresa precisa tomar para ressarcir os danos e corrigir os erros, além de adotar soluções concretas imediatas para precaver a reincidência dos desastres. Ficam todos mais lenientes, mas compreensíveis, menos indignados.

E nessa esteira, os prefeitos e governadores também logo atenuam as ações corretivas duras que anunciavam à imprensa por ocasião da tragédia. O Ministério Público faz um TAC e os advogados das vítimas discutem acordos e decisões judiciais que acabam por traduzir em cifras financeiras, cada vez menos significativas, as indenizações às famílias enlutadas. Basicamente, uma sinistra contabilidade em forma de chantagem.

Continuando as atenuações, chega a tecnologia de ponta, que tende a ser muito segura no aviso de rupturas iminentes e é o que agora a empresa passa a fazer. E “por esse bom comportamento pós-tragédia”, os órgãos de governo federal, estaduais e municipais logo se tornam mais compreensíveis também, mais pródigos em aliviar a pressão e passam a fazer concessões generosas para que a empresa tenha mais prazo e condescendência para efetuar as medidas corretivas necessárias.

E seguindo a lógica brasileira, os crimes ambientais e de vida humana se eternizam em discussão sem fim na burocracia da Justiça e dos governos, nenhuma multa é paga, ninguém é preso e responsabilizado pelos crimes cometidos… até a próxima tragédia, em que todos voltam a se escandalizar e anunciar punições exemplares.

Vamos evoluir!

Outros ainda pensam, “melhor ainda seria jamais ter construído esse tipo de armazenamento de resíduos a montante há muito abandonado no mundo civilizado. E olha que a Vale é uma das maiores mineradoras do mundo”. E eu concordo. Duvido que a Vale faça extração e armazenamento a montante no exterior do jeito que se faz no Brasil, esta Terra de Marlboro.

A Vale deveria adotar, há muito, tecnologias e soluções modernas de disposição de resíduos. Mas não é isso que ela faz: prefere os depósitos a montante. E ainda constrói prédios, instalações e toda sorte de edificações embaixo para aproveitar o espaço e economizar um pouquinho mais, a despeito dos riscos exponenciais de acidentes, como os que tem ocorrido.

Idealmente, o rejeito deve ser depositado onde houve a lavra, jamais numa encosta a montante. Por exemplo, se os rejeitos são de uma mina subterrânea, deve-se devolvê-lo ao subsolo. Isto até ajuda na reestruturação e na reestabilização do solo da mina. As soluções mais baratas e, ainda mal geridas, levam aos desastres ambientais.

A fiscalização correta dos empreendimentos de grande porte no Brasil não pode ser feita por agências e agentes de controle que se posicionam burocraticamente, como um cartório no seu pior sentido. Os governos federal, estaduais e municipais também precisam receber um choque de modernidade para fazer uma adequada proteção ambiental em mineração para poder melhor enfrentar empresas que só buscam os bons resultados financeiros para seus acionistas, mesmo que aqui ou ali tenham que cenicamente absorver “pequenos efeitos colaterais” com uma ou outra tragédia ambiental. Afinal, “são apenas efeitos colaterais para os empregos que faremos e tributos que pagamos”.

Resumindo: o problema é de gestão!

*Adm. Wagner Siqueira é conselheiro federal pelo Rio de Janeiro e diretor-geral da Universidade Corporativa do Administrador

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Entidade civil criada pela Lei Federal 4.769/65, como órgão consultivo, orientador, disciplinador e fiscalizador do exercício da profissão de Administrador.

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